segunda-feira, 18 de abril de 2011

Depoimento de Kabengele Munanga ao Museu da Pessoa


Munanga, Kabengele


Depoimento de Kabengele Munanga ao Museu da Pessoa

Nascimento: 19/11/1942, Bakwa Kalonji
Profissão: Professor universitário e pesquisador
Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, antigo Zaire, em 19 de novembro de 1942. Foi o primeiro antropólogo de seu país, saindo pela primeira vez para fazer mestrado na Bélgica. Chegou ao Brasil por convite de um colega, terminou seu doutorado, retornou ao Congo. Em 1980 veio para o Brasil, para assumir a cadeira de Antropologia na Universidade do Rio Grande do Norte. Depois de um ano muda-se definitivamente para São Paulo, tomando como sua casa a Universidade de São Paulo. Tem cinco filhos, dois belgas, dois conguianos e um brasileiro. Meu nome, pronunciando na minha língua materna, é Kabengele Munanga. Eu nasci em Bakwa Kalonji, no antigo Zaire, atualmente República Democrática do Congo, no dia 19 de novembro de 1942.
O nome do meu pai é Ilunga Kalama. O nascimento dele eu não sei, porque quando meu pai faleceu, eu era criança de 6 meses. Naquela época, em plena colonização, não havia cartório, então não tem registro. Minha mãe é Mwanza Wa Biaya, nascida na cidade Bakua Mulumba, no antigo Zaire, não conheço a data dela de nascimento, mas meu irmão disse que ela teria falecido com uma idade estimada de 100 anos. Convivi com ela até quando eu já era professor da Universidade Nacional do Zaire. Retirei ela lá da aldeia, para conviver comigo na Universidade, comprei uma casinha. Depois tive que deixá-la para emigrar para o Brasil, são as circunstâncias da vida. Eu não a vi mais, me separei dela. A última vez que a vi foi em 1980, quando fui buscar meus filhos, nos últimos 10 anos da vida dela nós não nos vimos. Minha mãe, como uma mulher que nasceu no campo e cresceu no campo, era uma pessoa analfabeta. Tanto ela como meu pai eram analfabetos, em plena colonização, na época que eles nasceram não havia escola. Todo mundo diz que ela era uma pessoa muito generosa, muito social, tudo que tinha dividia com os vizinhos. Se ela ia para a feira comprar alguma coisa, na rua já estava distribuindo para os outros. Era muito amada pelas pessoas que a conheciam, tinha um coração profundamente humano. As casas no campo são casas simples. São casas, dentro do estilo africano, que lembram um pouquinho os mocambos do nordeste, parte da parede batida de terra e o teto coberto de palha. São casas simples, mas muito higiênicas e adaptadas à vida do campo. Não eram casas de tijolos e pedra, essas em que vivemos hoje. Tinha uma brincadeira que se diz aqui esconde-esconde, nós fazíamos muito nas aldeias. As brincadeiras eram nos fins de tarde, quando a lua é cheia, porque de dia é hora de trabalho. À noite, com a lua cheia, nós brincávamos de tudo quanto era tipo de brinquedo. Contávamos muitos contos, à noite ficávamos a contar estórias, e elas até que davam muito medo. Fazia parte da cultura. Também tinha corridas e jogo de futebol, mas não era com essa bola daqui. Fazíamos bolas com resto de panos misturados. Todas as culturas africanas são culturas onde a música tem um papel muito importante no cotidiano. Não se trabalha sem cantar, as festas sempre são cantadas e dançadas. As músicas tradicionais faziam parte da vida. As músicas transmitem alegria, o prazer da vida. Eu nasci em 1942, na Segunda Guerra. Naquela época, todas as escolas faziam parte do monopólio das igrejas católicas e, principalmente, protestantes. Eu estudei em escola de padre, fui batizado, estudei em colégio interno. Rezei bastante, até que tinha calos nos joelhos no tempo do colégio. Eu vi o mar já com quase 29 anos, quando fui fazer o doutorado na Bélgica. Nasci no interior, da minha cidade até o litoral são quase 3 mil quilômetros. O mar me impressionou muito. A segunda impressão foi o dia que caiu a neve. Acordei de manhã e vi pela janela aquela coisa. Não queria nem descer. Aí um casal italiano que conheci na Bélgica veio me buscar. Eu estava com medo. Eles insistiram: “Desce, não tem problema”. Eu não queria pisar na neve. Algumas práticas da cidade me surpreenderam. Uma das coisas foi num velório: todo mundo se cumprimentou e foram embora para as casas deles. Na minha cultura, a morte é um momento de solidariedade. Depois do enterro, você vai para a casa onde está o luto, fica um pouquinho com a pessoa que perdeu o membro da família. À noite todo mundo se reúne na casa dessa pessoa para ela não ficar sozinha. Todo mundo traz seu prato de comida e bebida. Isso pode durar duas semanas, até um mês. Todas as noites, é lá o lugar de encontro. Os homens dormem fora, nas cadeiras e as mulheres dormem dentro da casa, junto das esteiras, no chão. Quando eu vi as pessoas se cumprimentarem e irem embora para as casas, aquilo me chocou, achei que era falta de solidariedade. O individualismo na Europa é chocante para quem chega. Eu vivia num prédio onde eu mal conhecia meus vizinhos, pouco se falavam, só no elevador falava-se sobre o tempo, se estava frio ou calor. É chocante. Me lembro de um dia que tínhamos uma festa, havia um pouquinho de barulho. O vizinho não foi nem bater para avisar que estávamos fazendo muito barulho, foi chamar a policia. Até oito anos mais ou menos vivi na aldeia, depois fui morar na cidade com meu irmão para poder estudar. Ele era gerente de uma loja de um comerciante judeu. Cada vez que ele era transferido para uma cidade, eu o acompanhava, porque ele era praticamente o meu pai. Quando o Zaire recebeu a independência, fui para a capital Kinshasa, onde terminei finalmente a escola secundária. A minha primeira universidade era uma universidade privada, filial da Universidade de Luvaine, uma Universidade Católica da Bélgica. Eu fui para uma segunda Universidade, a Universidade Oficial do Congo e escolhi a Antropologia. Fui o primeiro antropólogo formado naquela Universidade. Escolhi Antropologia porque era uma disciplina nova, estava sendo implantada e eu me interessei pela cultura, pelo estudo da cultura. Tinha professor visitante que vinha de toda a parte, dos Estados Unidos, da França, da própria Bélgica. Às vezes, tinha professor que vinha me procurar na residência universitária para chamar para a aula. Fui um aluno muito mimado, terminei a antropologia em 1969 e meu primeiro emprego foi como professor na Universidade, na categoria que eles chamam de Assistente, o que corresponderia aqui na Universidade de São Paulo a auxiliar de ensino.
Nas nossas universidades ainda não tinha curso de pós-graduação. Fui para a Bélgica para fazer o doutorado. A Bélgica era nossa antiga metrópole, fomos colonizados por eles. Havia bolsas de estudos para fazer pós-graduação lá. Vivi na Bélgica de 1969 a 1971. Só três anos. Meus dois primeiros filhos nasceram lá. O último, Mulumba, já nasceu aqui no Brasil. Quando voltei para o Zaire ainda não tinha defendido minha tese de doutorado, fui para fazer pesquisa de campo. Por alguns problemas políticos fui bloqueado e não pude mais voltar para a Bélgica. Foi assim que eu descobri o Brasil, por um contato com um professor da Universidade de São Paulo, professor Fernando Mourão, que hoje é o diretor do Centro de Estudos Africanos. Estava lá fazendo conferencia, como convidado, e era possível terminar o doutorado na Universidade de São Paulo. Cheguei em outubro de 1977 e terminei a pesquisa em dois anos e meio. Meu estudo foi sobre um grupo étnico do sul do Zaire. É uma pesquisa sobre aspectos econômicos, políticos e sociais daquele grupo. Me adaptar à língua foi a coisa mais pesada, porque eu falava francês como língua oficial. Eu dizia: “eu não falou português” com sotaque francês. A única coisa. No primeiro mês, eu comia aqui no CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade São Paulo), porque era mais fácil, era pegar a bandeja e passar, mas nos fins de semanas era um problema, porque eu falava coisa que ninguém entendia. Muitas vezes eu só gesticulava, mostrava o pão, e o presunto e falava sanduíche, em francês também é sanduíche. Tomar uma cerveja, falava Bier em francês, beer em inglês, ninguém entende. Nessas lanchonetes ninguém entende. Até que mostrava alguém que estava tomando cerveja. Foi assim que consegui sobreviver. Aí abriu um curso de língua, na própria USP, na Coordenadoria de atividades culturais, para alunos estrangeiros. Depois de quatro meses comecei a me expressar. Mas antes disso, eu comecei meus cursos de pós-graduação, na segunda semana já estava na sala de aula, comecei a ler sem parar. A partir do francês, você pode ler muita coisa em português. Os filhos não vieram junto para o Brasil. Quando, em 1976, eu cheguei a meu país, estavam vivendo numa ditadura política. Alguns de meus familiares estavam com problemas políticos, alguns estavam até presos por uma oposição do regime de Ditadura ou exilados no exterior, então eu vi que não havia mais condições para um trabalho na área de ciências sociais, em que você faz uma crítica à sociedade. Em fevereiro de 1978, estava praticamente saindo como desertor. Tive que inventar um seminário fora, para eles poderem me liberar. Quando cheguei aqui, como eu tinha um diploma brasileiro, meu primeiro emprego foi como professor na Universidade do Rio Grande do Norte, em Natal, no curso de mestrado em Antropologia. Depois de um ano, em dezembro de 1980, eu voltei para buscar os quatro filhos. O meu filho mais velho chegou aqui com 10 anos de idade.
As crianças têm muita facilidade para se adaptar. Eu me lembro do primeiro dia que nós chegamos e eles já estavam jogando bola na rua com outras crianças. Eles falando em francês e as outras crianças falando em português. Me admirei como eles se comunicaram, com a bola. Só tive um filho que tive um pouquinho de dificuldade, o meu caçula do meu primeiro casamento, o Mbiya, que não podia se comunicar na escola, na pré-escola, porque ele chegou com quatro anos. Ficou praticamente louco, dava pontapé pra todo mundo, para os professores, berrava. Era uma crise de loucura, porque ele não sabia se comunicar com ninguém. Cometi o erro de mandar as crianças logo na segunda semana para a escola, achando que isso ia ser bom eles se acostumarem a lidar com os outros. Foi uma experiência terrível, mas só com ele. Com os outros, tinha preconceito na escola. Aqueles preconceitos raciais que nós conhecemos, essas coisas. Nas primeiras semanas, meu filho mais velho chegou em casa e perguntou “Papai, o que é macaco?” Macaco é como em francês, macac. Ele disse: “Aquele menino me chamou de macaco”. No dia seguinte, brigou.
Há negros no nordeste, mas quando você chega às escolas públicas de boa qualidade, o que se tem são alunos brancos, não tem negro. Eles eram a minoria. Eles têm muitos negros, mas isso não quer dizer que no nordeste não sejam racistas, não quer dizer que os baianos não sejam racistas. Foi a primeira dificuldade. E mudamos de escola, para uma particular. Ficamos em Natal só um ano, depois nos mudamos para São Paulo. Depois de um ano em Natal eles já falavam a língua, chegaram a São Paulo já dominando o idioma, estudaram aqui. Como estudaram em escola particular, às vezes convivendo com o preconceito, às vezes convivendo com a amizade. O preconceito aqui não tem nada com a cultura, mesmo os negros brasileiros são discriminados, têm preconceito. Eles falam a mesma língua, têm a mesma cultura. Na cultura eu sou até muito respeitado, quando abro a boca falando francês: “Ele não é daqui, é diferente dos negros daqui, vamos tratá-lo bem”.
Tem imigrante voluntário, que quer mudar a vida, quer viver num outro continente, num outro país. Tem imigrante que por motivos políticos ou sociais teve que abandonar suas terras em busca de sobrevivência. São dois tipos de imigrantes, mas cada um tem uma dificuldade, dependendo da história de vida dele, da formação, alguns têm dificuldades de integração, outros têm menos. Qualquer lugar do mundo onde você vai, você tem que fazer um esforço para se integrar e para ser integrado. Um país tem também seus preconceitos internos - como o problema de preconceito racial que existe no Brasil - preconceitos regionais como se tem em relação aos nordestinos e a primeira coisa que você tem que fazer, mesmo mantendo contato e vínculo com sua cultura-mãe, com sua história que você não pode perder - porque são raízes de seus filhos que você não pode perder - tem que fazer um esforço de integração, de adaptação à nova sociedade na qual você foi recebido.
Eu me assumi como intelectual engajado, porque essa sociedade me recebeu, me integrou. Tento manter minhas raízes, não posso perdê-las. Hoje tenho novas raízes, tanto que tenho um filho brasileiro. Faz parte da minha vida, da minha história.
Todo imigrante tem que fazer um duplo esforço, por um lado para não esquecer suas raízes, suas histórias. Seus netos e bisnetos vão querer saber onde está a outra parte da história da família. É possível preservar, por isso o trabalho do Museu da Pessoa me deixou apaixonado. Tem gente que não tem nem documento, nem foto, nem nada. Os filhos, os netos e bisnetos que quiserem saber alguma coisa, não encontrarão nada. Às vezes, os descendentes não sabem de mais nada, isso é muito triste.
É preciso amor por sua terra e pela terra que te recebeu, mesmo que essa terra tenha seus problemas. No meu caso, cheguei aqui com uma bolsa de estudos do governo brasileiro. Essa bolsa de estudos veio do povo brasileiro. O povo brasileiro, na realidade, pagou parte de meus estudos, isso é uma coisa que de alguma forma eu tenho que devolver. Todos esses anos trabalhando na Universidade de São Paulo, formando pessoas. Já formei 15 doutores e 5 mestres. Nem por isso perdi o contato do que acontece do outro lado, acompanho o que acontece no Zaire. Se um dia tiver oportunidade, mesmo vivendo aqui, ser útil para o desenvolvimento daquele país. Tenho parentes, tenho sobrinhos, sobrinhos, netos, irmãos, tios, tias, um pedaço da minha vida que não posso esquecer.
Para meus filhos eu conto a história da família, conto a minha própria vida, de onde vim. Cada membro da família, onde estão, o que eles estão fazendo, o que eles estudaram, como era a vida. Conto sempre todos os lados, que na família tem pessoas pobres, outras que conseguiram alguma coisa na vida, tem intelectuais. Tem que relembrar a memória da família, esperando a possibilidade de fazer algumas viagens com eles, pra eles conhecerem essa parte da família.O meu filho mais velho chegou aqui com 10 anos, agora está com 32. O mais jovem chegou com 4 anos e está com 26 anos. Eles conhecem mais o Brasil. Falam português sem sotaque, um bom português. Riem de mim porque eu falo com sotaque. São jovens de classe média intelectual que vivem numa cidade como São Paulo. Não são casados. Estou esperando netos, não sei quando vai nascer um, não vejo a hora!
Esse trabalho é bárbaro, um trabalho excelente e que deve continuar, tem que encorajar isso. Muitos não têm possibilidade de registrar essas histórias, alguns pensam que um dia vai ter tempo de sentar e escrever sua autobiografia, nem todos, 90% chegam a não fazer sua autobiografia, qualquer coisa pode acontecer em qualquer momento. Se um dia um jovem chega lá no Museu e encontra a história da família, ou eu não estou mais aqui, porque ninguém fica. Kabengele já tem filhos. Um dia, um neto ou um bisneto vai procurar e vê que o pai não deixou nada. Tem que se registrar em algum lugar e dar possibilidade de falarmos também. Às vezes, é difícil você em casa, botar seus filhos, “vem aqui que eu vou contar histórias”, como eu estou contando hoje. Quando eles estão curiosos, fazem perguntas, aproveita-se a oportunidade para contar uma coisa ou outra, mas não se conta toda a história. Com o tempo, os mais interessados vão conhecer, mas como são fatos que passam pela oralidade, não é nada registrado, e a memória é falha, se perde com o tempo. As próximas gerações não podem abrir mão de viver, não abrir mão de sonhar. O mundo melhor, não sei se ele existe, é esse mundo concreto que estamos vivendo e que estamos lutando e cada um deixando para as gerações mais jovens a consciência de mudança. Transmitir essa consciência para outras gerações. E assim continuar a vida. 
Fontes: Museu da Pessoa / Casa das Africas

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