quinta-feira, 21 de abril de 2011

A rainha Jinga – África central, século XVII

Uma das personagens mais conhecidas da história centro-africana é a chefe de Matamba chamada pela crônica portuguesa e missionária de rainha Jinga. Nascida em torno de 1580, na chefatura do Ndongo, filha do principal chefe da região, que tinha o título dengola a kiluanje, morreu em 1663, depois de uma longa vida ocupada em grande parte em guerrear com os portugueses. Estes haviam se instalado na ilha de Luanda e em algumas fortalezas ao longo do rio Cuanza a partir de 1571, quando Paulo Dias de Novaes chegou para ocupar a donataria que D. Sebastião havia lhe atribuído. A ilha de Luanda e as terras vizinhas eram freqüentadas pelos portugueses sediados em São Tomé, desde meados do século XVI, e por essa época os povos que ali viviam começavam a se tornar mais independentes do domínio exercido pelo mani Congo, chefe do estado mais poderoso da região e aliado dos portugueses desde o final do século XV. Quando os portugueses chegaram para se instalar no Ndongo, este era chefiado por um irmão de Jinga, que resistiu às tentativas de ocupação de suas terras, seja pela guerra, seja pela imposição de tratados de vassalagem. A região era habitada por povos ambundos, agricultores e organizados em torno de linhagens, que foram duramente combatidos pelos portugueses, aliados aos imbangalas, povos guerreiros vindos do interior e do sul, que àquela altura perambulavam pela costa. Diante da superioridade militar dos portugueses fortalecidos pelos exércitos imbangalas, os ambundos cederam importantes porções dos territórios que até então ocupavam. O primeiro contato de Jinga com os portugueses, registrado por estes, ocorreu em 1622, quando ela foi enviada a Luanda na qualidade de embaixadora de seu irmão, chefe maior do Ndongo. Do contato com o então governador de Angola, João de Sousa, resultou um tratado de paz que de fato não vigorou, e o batismo de Jinga, que ao aceitar a religião dos brancos recebeu o nome cristão de Ana de Souza. Ela causou uma forte impressão no governador e demais autoridades portuguesas, comportando-se como chefe de estado habilidosa. De seu lado, também deve ter ficado impressionada com o que viu em Angola: construções de pedra, grandes embarcações no porto, mercadorias variadas, comportamentos faustosos e ritualizados cercando o poder. Tudo indica que viu seu batismo como uma forma de construir relações pacíficas com os brancos. Mas estas não ocorreram, pois os capítulos do tratado de paz firmado entre ela e o governador não foram seguidos por nenhuma das partes.
Naquele início de século, a política portuguesa estava fundada na guerra contra as populações nativas, visando tanto a conquista de territórios que ampliasse os limites da jovem colônia com sede em Luanda, como a aquisição de escravos a serem negociados nos circuitos atlânticos, nos quais a demanda por essa mão-de-obra era crescente. O soldo dos soldados e o pagamento dos governadores e demais funcionários coloniais tinha que ser garantido por esse comércio, pois de Lisboa não chegavam recursos suficientes para arcar com os gastos necessários à conquista em curso e sua manutenção. Dessa forma, os limites territoriais do Ndongo e o controle que até então ongola mantinha sobre as populações locais, foram encolhendo, com chefes se tornando subordinados ao governo português.
Quando em cerca de 1624 o ngola morreu, talvez envenenado a mando de Jinga, esta começou a se articular para ocupar a chefia do Ndongo. Nomeada tutora de seu sobrinho, designado o sucessor do ngola falecido, logo Jinga conseguiu eliminar também seu sobrinho, mas não foi reconhecida pelos portugueses como legítima chefe do Ndongo. Para esse lugar, eles apoiaram um outro candidato, que aceitou o avassalamento a Portugal, tornando-se o Ndongo uma chefia subordinada a Luanda. A estratégia seguida por Jinga foi procurar apoio entre grupos imbangalas, que perambulavam em terras ao sul do Ndongo, inclusive tornando-se esposa de um chefe, e dessa forma sacerdotisa do maji-a-samba, cerimônia que envolvia a confecção de um ungüento que dava invencibilidade aos guerreiros, e na qual eram feitos sacrifícios humanos. Enquanto os conquistadores brancos estendiam suas alianças entre chefes ambundos e imbangalas, mantendo o Ndongo como estado subordinado à Coroa portuguesa, Njinga tornou-se a maior opositora de sua presença na região, sempre reivindicando ser a verdadeira ngola do Ndongo. No início dos anos 1630 ocupou Matamba, uma chefatura situada a nordeste do Ndongo, limítrofe do Congo e do Dembo, composto de chefaturas ambundas, aliadas do Congo e com crescente presença portuguesa. De Matamba intensificou sua resistência à penetração territorial dos portugueses, tornando-se importante aliada dos holandeses, que mesmo antes de ocupar Luanda, de 1641 a 1648, mantinham uma presença intensa na região da foz do rio Congo. Para lá Jinga mandava escravos, desviando dos mercados portugueses essa mercadoria cobiçada. Antonio de Oliveira Cadornega, português que viveu em Angola nessa época, relata com detalhes em seu livro História das Guerras Angolanas esse período marcado por guerras de conquista, no qual Jinga não se dobrou diante das forças militares portuguesas, às vezes sendo derrotada, mas também impondo a elas muitas derrotas. Também período no qual o quilombo de Palmares vicejava no nordeste brasileiro, certamente abrigando entre os quilombolas muitos ambundos e imbangalas, aprisionados na região de Angola e direcionados para os engenhos controlados seja por portugueses, seja por holandeses. Com a expulsão dos holandeses de Luanda pelas tropas afro-luso-brasílicas comandadas por Salvador Correia de Sá, Jinga ficou sem seus principais parceiros brancos. A partir de então, buscou com empenho cada vez maior estabelecer a paz com os portugueses, que pelo seu lado também a buscaram com mais vigor, privilegiando o bom fluxo das mercadorias por meio de acordos com os chefes locais em detrimento das guerras de conquista, que produziam escravos mas eram por demais dispendiosas. No processo de estabelecimento da paz com os portugueses foi central a atuação dos missionários capuchinhos, que desde 1645 atuavam na região de Angola, a partir da ação direta de Roma, por meio da Propaganda Fide, órgão voltado para a evangelização dos povos gentios, que passou a rivalizar com a atuação dos missionários ibéricos nos espaços de expansão dos impérios europeus. Para Jinga, a associação entre o catolicismo e a paz estava presente, como já mencionado, desde o seu primeiro contato com os portugueses, na embaixada de 1622 a Luanda. Para os portugueses de Luanda, o batismo era condição do avassalamento dos chefes locais, que pelos ritos do undamento, passavam a reconhecer a autoridade da Coroa portuguesa inclusive com o pagamento de tributos, apesar de manterem a soberania em seus territórios, contando com a ajuda dos conquistadores portugueses para isso. Mas essa não era a única situação conhecida, pois os chefes do Congo, reconhecidos como cristão desde o primeiro batismo em 1491, mantinham sua independência e eram eles que protegiam a ação dos missionários que atuavam em seus domínios. Para os chefes congoleses o catolicismo era uma forma de legitimação do seu poder e não de submissão à Coroa portuguesa. Em 1656 foi finalmente firmado um tratado de paz entre a Jinga e o embaixador do governador português de Luanda, Luiz Martins de Sousa Chichorro, com a ajuda fundamental do padre capuchinho Antonio de Gaeta, que deixou um relato sobre sua experiência junto à Jinga, transformado em livro pelo padre Francesco Maria Gioia da Napoli e publicado em 1669 com o título: La maravigliosa conversione alla santa fede di Cristo della regina Singa, e del suo regno di Matamba nell'Africa Meridionale. Junto com a paz, Jinga voltou a aceitar os ensinamentos católicos e ordenou uma série de mudanças para seu povo, proibindo certas práticas tradicionais como o sacrifício de crianças e introduzindo novos ritos como a adoração do crucifixo, as procissões e missas.
Desse momento até sua morte Jinga tornou a capital de seu reino um centro de disseminação do catolicismo, permitindo a construção de igrejas e a ação dos missionários, que frequentemente entravam em choque com os sacerdotes tradicionais, destruindo altares e proibindo ritos importantes no sistema de crenças locais. Antonio de Gaeta, com a saúde debilitada pelas repetidas febres, foi substituído por João Antonio Cavazzi da Montecúcculo, também capuchinho enviado pela Propaganda Fide, que esteve ao lado de Jinga até seus minutos finais e deixou um dos mais importantes relatos sobre as regiões do Congo e Angola no livro Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, publicado em 3 volumes em 1687, já depois de sua morte. As práticas católicas e os missionários não ficaram presentes por muito tempo depois da morte de Mocambo, ou D. Bárbara, irmã que Jinga fez questão de tornar sua sucessora e que morreu logo depois dela, em 1666. Os chefes que assumiram o poder em Matamba depois disso afastaram-se do catolicismo e retomaram as tradições ambundas e imbangalas, apesar de continuarem a ser importantes fornecedores de escravos para os mercadores portugueses e seus emissários. O tempo das guerras também já havia passado, e elas só voltariam com vigor no século XIX, quando Portugal fez nova investida de ocupação territorial, em outro contexto histórico, dando início a outra fase da presença colonial em Angola. A rainha Jinga de Matamba, no entanto, continuou viva no imaginário da região, sendo ainda hoje das mais importantes heroínas de Angola, apropriada com sentidos atualizados pela historiografia nacional, que nela vê a primeira angolana a resistir à dominação portuguesa. Também no Brasil ela esteve presente desde os tempos coloniais, quando súditos seus devem ter aportado como escravos em terras americanas, sendo personagem de festividades nas quais reis negros são celebrados, como as coroações de reis do Congo. Os cortejos que os acompanham, compostos por figuras da sua corte e de embaixadas vindas de outros lugares, muitas vezes incluem a rainha Jinga, por vezes aliada, por vezes inimiga do rei do Congo, nessas festas que recriam um passado africano entre os negros brasileiros. Marina de Mello e Souza é professora de História da África Departamento de História da Universidade de São Paulo e autora de Reis negros no Brasil escravista África e Brasil africano, além de artigos sobre o catolicismo na África central e o catolicismo negro no Brasil.

Fonte:Por Marina de Mello e Souza

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Depoimento de Kabengele Munanga ao Museu da Pessoa


Munanga, Kabengele


Depoimento de Kabengele Munanga ao Museu da Pessoa

Nascimento: 19/11/1942, Bakwa Kalonji
Profissão: Professor universitário e pesquisador
Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, antigo Zaire, em 19 de novembro de 1942. Foi o primeiro antropólogo de seu país, saindo pela primeira vez para fazer mestrado na Bélgica. Chegou ao Brasil por convite de um colega, terminou seu doutorado, retornou ao Congo. Em 1980 veio para o Brasil, para assumir a cadeira de Antropologia na Universidade do Rio Grande do Norte. Depois de um ano muda-se definitivamente para São Paulo, tomando como sua casa a Universidade de São Paulo. Tem cinco filhos, dois belgas, dois conguianos e um brasileiro. Meu nome, pronunciando na minha língua materna, é Kabengele Munanga. Eu nasci em Bakwa Kalonji, no antigo Zaire, atualmente República Democrática do Congo, no dia 19 de novembro de 1942.
O nome do meu pai é Ilunga Kalama. O nascimento dele eu não sei, porque quando meu pai faleceu, eu era criança de 6 meses. Naquela época, em plena colonização, não havia cartório, então não tem registro. Minha mãe é Mwanza Wa Biaya, nascida na cidade Bakua Mulumba, no antigo Zaire, não conheço a data dela de nascimento, mas meu irmão disse que ela teria falecido com uma idade estimada de 100 anos. Convivi com ela até quando eu já era professor da Universidade Nacional do Zaire. Retirei ela lá da aldeia, para conviver comigo na Universidade, comprei uma casinha. Depois tive que deixá-la para emigrar para o Brasil, são as circunstâncias da vida. Eu não a vi mais, me separei dela. A última vez que a vi foi em 1980, quando fui buscar meus filhos, nos últimos 10 anos da vida dela nós não nos vimos. Minha mãe, como uma mulher que nasceu no campo e cresceu no campo, era uma pessoa analfabeta. Tanto ela como meu pai eram analfabetos, em plena colonização, na época que eles nasceram não havia escola. Todo mundo diz que ela era uma pessoa muito generosa, muito social, tudo que tinha dividia com os vizinhos. Se ela ia para a feira comprar alguma coisa, na rua já estava distribuindo para os outros. Era muito amada pelas pessoas que a conheciam, tinha um coração profundamente humano. As casas no campo são casas simples. São casas, dentro do estilo africano, que lembram um pouquinho os mocambos do nordeste, parte da parede batida de terra e o teto coberto de palha. São casas simples, mas muito higiênicas e adaptadas à vida do campo. Não eram casas de tijolos e pedra, essas em que vivemos hoje. Tinha uma brincadeira que se diz aqui esconde-esconde, nós fazíamos muito nas aldeias. As brincadeiras eram nos fins de tarde, quando a lua é cheia, porque de dia é hora de trabalho. À noite, com a lua cheia, nós brincávamos de tudo quanto era tipo de brinquedo. Contávamos muitos contos, à noite ficávamos a contar estórias, e elas até que davam muito medo. Fazia parte da cultura. Também tinha corridas e jogo de futebol, mas não era com essa bola daqui. Fazíamos bolas com resto de panos misturados. Todas as culturas africanas são culturas onde a música tem um papel muito importante no cotidiano. Não se trabalha sem cantar, as festas sempre são cantadas e dançadas. As músicas tradicionais faziam parte da vida. As músicas transmitem alegria, o prazer da vida. Eu nasci em 1942, na Segunda Guerra. Naquela época, todas as escolas faziam parte do monopólio das igrejas católicas e, principalmente, protestantes. Eu estudei em escola de padre, fui batizado, estudei em colégio interno. Rezei bastante, até que tinha calos nos joelhos no tempo do colégio. Eu vi o mar já com quase 29 anos, quando fui fazer o doutorado na Bélgica. Nasci no interior, da minha cidade até o litoral são quase 3 mil quilômetros. O mar me impressionou muito. A segunda impressão foi o dia que caiu a neve. Acordei de manhã e vi pela janela aquela coisa. Não queria nem descer. Aí um casal italiano que conheci na Bélgica veio me buscar. Eu estava com medo. Eles insistiram: “Desce, não tem problema”. Eu não queria pisar na neve. Algumas práticas da cidade me surpreenderam. Uma das coisas foi num velório: todo mundo se cumprimentou e foram embora para as casas deles. Na minha cultura, a morte é um momento de solidariedade. Depois do enterro, você vai para a casa onde está o luto, fica um pouquinho com a pessoa que perdeu o membro da família. À noite todo mundo se reúne na casa dessa pessoa para ela não ficar sozinha. Todo mundo traz seu prato de comida e bebida. Isso pode durar duas semanas, até um mês. Todas as noites, é lá o lugar de encontro. Os homens dormem fora, nas cadeiras e as mulheres dormem dentro da casa, junto das esteiras, no chão. Quando eu vi as pessoas se cumprimentarem e irem embora para as casas, aquilo me chocou, achei que era falta de solidariedade. O individualismo na Europa é chocante para quem chega. Eu vivia num prédio onde eu mal conhecia meus vizinhos, pouco se falavam, só no elevador falava-se sobre o tempo, se estava frio ou calor. É chocante. Me lembro de um dia que tínhamos uma festa, havia um pouquinho de barulho. O vizinho não foi nem bater para avisar que estávamos fazendo muito barulho, foi chamar a policia. Até oito anos mais ou menos vivi na aldeia, depois fui morar na cidade com meu irmão para poder estudar. Ele era gerente de uma loja de um comerciante judeu. Cada vez que ele era transferido para uma cidade, eu o acompanhava, porque ele era praticamente o meu pai. Quando o Zaire recebeu a independência, fui para a capital Kinshasa, onde terminei finalmente a escola secundária. A minha primeira universidade era uma universidade privada, filial da Universidade de Luvaine, uma Universidade Católica da Bélgica. Eu fui para uma segunda Universidade, a Universidade Oficial do Congo e escolhi a Antropologia. Fui o primeiro antropólogo formado naquela Universidade. Escolhi Antropologia porque era uma disciplina nova, estava sendo implantada e eu me interessei pela cultura, pelo estudo da cultura. Tinha professor visitante que vinha de toda a parte, dos Estados Unidos, da França, da própria Bélgica. Às vezes, tinha professor que vinha me procurar na residência universitária para chamar para a aula. Fui um aluno muito mimado, terminei a antropologia em 1969 e meu primeiro emprego foi como professor na Universidade, na categoria que eles chamam de Assistente, o que corresponderia aqui na Universidade de São Paulo a auxiliar de ensino.
Nas nossas universidades ainda não tinha curso de pós-graduação. Fui para a Bélgica para fazer o doutorado. A Bélgica era nossa antiga metrópole, fomos colonizados por eles. Havia bolsas de estudos para fazer pós-graduação lá. Vivi na Bélgica de 1969 a 1971. Só três anos. Meus dois primeiros filhos nasceram lá. O último, Mulumba, já nasceu aqui no Brasil. Quando voltei para o Zaire ainda não tinha defendido minha tese de doutorado, fui para fazer pesquisa de campo. Por alguns problemas políticos fui bloqueado e não pude mais voltar para a Bélgica. Foi assim que eu descobri o Brasil, por um contato com um professor da Universidade de São Paulo, professor Fernando Mourão, que hoje é o diretor do Centro de Estudos Africanos. Estava lá fazendo conferencia, como convidado, e era possível terminar o doutorado na Universidade de São Paulo. Cheguei em outubro de 1977 e terminei a pesquisa em dois anos e meio. Meu estudo foi sobre um grupo étnico do sul do Zaire. É uma pesquisa sobre aspectos econômicos, políticos e sociais daquele grupo. Me adaptar à língua foi a coisa mais pesada, porque eu falava francês como língua oficial. Eu dizia: “eu não falou português” com sotaque francês. A única coisa. No primeiro mês, eu comia aqui no CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade São Paulo), porque era mais fácil, era pegar a bandeja e passar, mas nos fins de semanas era um problema, porque eu falava coisa que ninguém entendia. Muitas vezes eu só gesticulava, mostrava o pão, e o presunto e falava sanduíche, em francês também é sanduíche. Tomar uma cerveja, falava Bier em francês, beer em inglês, ninguém entende. Nessas lanchonetes ninguém entende. Até que mostrava alguém que estava tomando cerveja. Foi assim que consegui sobreviver. Aí abriu um curso de língua, na própria USP, na Coordenadoria de atividades culturais, para alunos estrangeiros. Depois de quatro meses comecei a me expressar. Mas antes disso, eu comecei meus cursos de pós-graduação, na segunda semana já estava na sala de aula, comecei a ler sem parar. A partir do francês, você pode ler muita coisa em português. Os filhos não vieram junto para o Brasil. Quando, em 1976, eu cheguei a meu país, estavam vivendo numa ditadura política. Alguns de meus familiares estavam com problemas políticos, alguns estavam até presos por uma oposição do regime de Ditadura ou exilados no exterior, então eu vi que não havia mais condições para um trabalho na área de ciências sociais, em que você faz uma crítica à sociedade. Em fevereiro de 1978, estava praticamente saindo como desertor. Tive que inventar um seminário fora, para eles poderem me liberar. Quando cheguei aqui, como eu tinha um diploma brasileiro, meu primeiro emprego foi como professor na Universidade do Rio Grande do Norte, em Natal, no curso de mestrado em Antropologia. Depois de um ano, em dezembro de 1980, eu voltei para buscar os quatro filhos. O meu filho mais velho chegou aqui com 10 anos de idade.
As crianças têm muita facilidade para se adaptar. Eu me lembro do primeiro dia que nós chegamos e eles já estavam jogando bola na rua com outras crianças. Eles falando em francês e as outras crianças falando em português. Me admirei como eles se comunicaram, com a bola. Só tive um filho que tive um pouquinho de dificuldade, o meu caçula do meu primeiro casamento, o Mbiya, que não podia se comunicar na escola, na pré-escola, porque ele chegou com quatro anos. Ficou praticamente louco, dava pontapé pra todo mundo, para os professores, berrava. Era uma crise de loucura, porque ele não sabia se comunicar com ninguém. Cometi o erro de mandar as crianças logo na segunda semana para a escola, achando que isso ia ser bom eles se acostumarem a lidar com os outros. Foi uma experiência terrível, mas só com ele. Com os outros, tinha preconceito na escola. Aqueles preconceitos raciais que nós conhecemos, essas coisas. Nas primeiras semanas, meu filho mais velho chegou em casa e perguntou “Papai, o que é macaco?” Macaco é como em francês, macac. Ele disse: “Aquele menino me chamou de macaco”. No dia seguinte, brigou.
Há negros no nordeste, mas quando você chega às escolas públicas de boa qualidade, o que se tem são alunos brancos, não tem negro. Eles eram a minoria. Eles têm muitos negros, mas isso não quer dizer que no nordeste não sejam racistas, não quer dizer que os baianos não sejam racistas. Foi a primeira dificuldade. E mudamos de escola, para uma particular. Ficamos em Natal só um ano, depois nos mudamos para São Paulo. Depois de um ano em Natal eles já falavam a língua, chegaram a São Paulo já dominando o idioma, estudaram aqui. Como estudaram em escola particular, às vezes convivendo com o preconceito, às vezes convivendo com a amizade. O preconceito aqui não tem nada com a cultura, mesmo os negros brasileiros são discriminados, têm preconceito. Eles falam a mesma língua, têm a mesma cultura. Na cultura eu sou até muito respeitado, quando abro a boca falando francês: “Ele não é daqui, é diferente dos negros daqui, vamos tratá-lo bem”.
Tem imigrante voluntário, que quer mudar a vida, quer viver num outro continente, num outro país. Tem imigrante que por motivos políticos ou sociais teve que abandonar suas terras em busca de sobrevivência. São dois tipos de imigrantes, mas cada um tem uma dificuldade, dependendo da história de vida dele, da formação, alguns têm dificuldades de integração, outros têm menos. Qualquer lugar do mundo onde você vai, você tem que fazer um esforço para se integrar e para ser integrado. Um país tem também seus preconceitos internos - como o problema de preconceito racial que existe no Brasil - preconceitos regionais como se tem em relação aos nordestinos e a primeira coisa que você tem que fazer, mesmo mantendo contato e vínculo com sua cultura-mãe, com sua história que você não pode perder - porque são raízes de seus filhos que você não pode perder - tem que fazer um esforço de integração, de adaptação à nova sociedade na qual você foi recebido.
Eu me assumi como intelectual engajado, porque essa sociedade me recebeu, me integrou. Tento manter minhas raízes, não posso perdê-las. Hoje tenho novas raízes, tanto que tenho um filho brasileiro. Faz parte da minha vida, da minha história.
Todo imigrante tem que fazer um duplo esforço, por um lado para não esquecer suas raízes, suas histórias. Seus netos e bisnetos vão querer saber onde está a outra parte da história da família. É possível preservar, por isso o trabalho do Museu da Pessoa me deixou apaixonado. Tem gente que não tem nem documento, nem foto, nem nada. Os filhos, os netos e bisnetos que quiserem saber alguma coisa, não encontrarão nada. Às vezes, os descendentes não sabem de mais nada, isso é muito triste.
É preciso amor por sua terra e pela terra que te recebeu, mesmo que essa terra tenha seus problemas. No meu caso, cheguei aqui com uma bolsa de estudos do governo brasileiro. Essa bolsa de estudos veio do povo brasileiro. O povo brasileiro, na realidade, pagou parte de meus estudos, isso é uma coisa que de alguma forma eu tenho que devolver. Todos esses anos trabalhando na Universidade de São Paulo, formando pessoas. Já formei 15 doutores e 5 mestres. Nem por isso perdi o contato do que acontece do outro lado, acompanho o que acontece no Zaire. Se um dia tiver oportunidade, mesmo vivendo aqui, ser útil para o desenvolvimento daquele país. Tenho parentes, tenho sobrinhos, sobrinhos, netos, irmãos, tios, tias, um pedaço da minha vida que não posso esquecer.
Para meus filhos eu conto a história da família, conto a minha própria vida, de onde vim. Cada membro da família, onde estão, o que eles estão fazendo, o que eles estudaram, como era a vida. Conto sempre todos os lados, que na família tem pessoas pobres, outras que conseguiram alguma coisa na vida, tem intelectuais. Tem que relembrar a memória da família, esperando a possibilidade de fazer algumas viagens com eles, pra eles conhecerem essa parte da família.O meu filho mais velho chegou aqui com 10 anos, agora está com 32. O mais jovem chegou com 4 anos e está com 26 anos. Eles conhecem mais o Brasil. Falam português sem sotaque, um bom português. Riem de mim porque eu falo com sotaque. São jovens de classe média intelectual que vivem numa cidade como São Paulo. Não são casados. Estou esperando netos, não sei quando vai nascer um, não vejo a hora!
Esse trabalho é bárbaro, um trabalho excelente e que deve continuar, tem que encorajar isso. Muitos não têm possibilidade de registrar essas histórias, alguns pensam que um dia vai ter tempo de sentar e escrever sua autobiografia, nem todos, 90% chegam a não fazer sua autobiografia, qualquer coisa pode acontecer em qualquer momento. Se um dia um jovem chega lá no Museu e encontra a história da família, ou eu não estou mais aqui, porque ninguém fica. Kabengele já tem filhos. Um dia, um neto ou um bisneto vai procurar e vê que o pai não deixou nada. Tem que se registrar em algum lugar e dar possibilidade de falarmos também. Às vezes, é difícil você em casa, botar seus filhos, “vem aqui que eu vou contar histórias”, como eu estou contando hoje. Quando eles estão curiosos, fazem perguntas, aproveita-se a oportunidade para contar uma coisa ou outra, mas não se conta toda a história. Com o tempo, os mais interessados vão conhecer, mas como são fatos que passam pela oralidade, não é nada registrado, e a memória é falha, se perde com o tempo. As próximas gerações não podem abrir mão de viver, não abrir mão de sonhar. O mundo melhor, não sei se ele existe, é esse mundo concreto que estamos vivendo e que estamos lutando e cada um deixando para as gerações mais jovens a consciência de mudança. Transmitir essa consciência para outras gerações. E assim continuar a vida. 
Fontes: Museu da Pessoa / Casa das Africas

QUAL FOI O INICIO DO TRÁFICO DE ESCRAVO, SUAS ROTAS E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS DIRECTAS?


Ate o século XV os contactos entre a África e a Europa efectuavam-se através das costas do oceano indico, por intermédio dos comerciante árabes. Os comerciantes italianos e ibéricos estabelecidos em Marrocos traficavam escravos com o Mali e o songo

 Mas o tráfico mudou de orientação. O Sahaara cedeu progressivamente o lugar ao oceano atlântico onde os contactos se multiplicavam devido a descoberta científica e técnica que permitiram uma navegação mais seguras e a grande necessidade que a Europa tinha de ouro e especiarias.
 Os primeiros europeus a desembarcaram nas costas africanas foram os navegadores portugueses movidos por interesses e aventuras lucrativas. Vinham a comercializar a medida que iam pesquisando o litoral africano.

 Os primeiros contados entre os reis da Europa e de África foram contactos de igualdade e de aliança, e eram trocados produtos como: ouro, ferro trabalhado, marfim, carapaça de tartaruga, tecido e escravos.
 No litoral Índico os europeus limitaram-se a procura do caminho marítimo para o indico, fonte de ouro e especiarias levou-os a costa oriental africana. 
O objectivo principal dos portugueses na costa oriental, era de se apoderarem do mercado árabe. Assim a 1ª atitude foi destruir, pilhar, queimar cidades do
litoral Índico. No século XVI o sentido da história mudou. Era visível a interferência da Europa na evolução das sociedades africanas. Ate ao século XVIII a África foi o teatro que a história da humanidade conhece. Milhões de africano foram arrancados violentamente das suas terras e do seu meio social para enriquecerem uma burguesia mercantil sedenta de ouro e especiaria.

 É este período que se designava por era do tráfico para África e período de acumulação primitiva de capital para Europa. No começo os escravos eram levados para Europa (Lisboa), onde aprenderam a língua portuguesa e doutrinados na religião católica. Alguns deles eram empregues como mão-de-obra na agricultura em Algarve, Madeira e Açores. Até a descoberta de América o tráfico de escravo forneceu a Europa algumas dezenas de milhões de escravos do século XV ou XX. 
CONSEQUÊNCIAS DIRECTAS DO TRÁFICO DE ESCRAVOMuitos historiadores extra-africanos procuram deliberadamente banalizar o tráfico de escravo como um ocidente de percurso insignificante da história da Europa. Ridiculamente alguns autores defendem que a África não sofreu consequência negativa justamente porque a zona costeira do continente onde se exercerá o comércio do Ébano são hoje aquelas que apresentam mais populosa. Outros ainda defendem que a África tinha lucrado mais do que perdido, porque, o trafico de escravo permitiu-lhes introduzir no continente a cultura de produtos Ameríndios tas como: café, cana-de-açúcar e algodão. Os mais ingénuos pedem ate que a África deixa de lastimar porque o tráfico de escravo permitiu ao continente entrar na chamada Historia Universal. A avaliar em toda a sua totalidade, os efeitos profundos que a escravatura teve no continente africano a nível económico, social, politico e ate psicológico e cultural é difícil mas a verdade é que o tráfico de escravo é o maior mal que o mundo já mais conheceu.

domingo, 17 de abril de 2011

Fela Kuti

A Musica é a Arma


Fela Kuti é provavelmente um dos nomes mais instigantes e impressionantes da relação entre música, política, ativismo, força de vontade e atitude que se tem notícia. Isso tudo junto é Fela Kuti, o homem que não se curvou diante da opressão do sistema e nem da vontade de uma minoria. E é justamente esse homem – e sobretudo o artista e ativista político – que é retratado no documentário A música é a arma, produzido no início da década de 80 e lançado oficialmente em 2003 com direção dos franceses Jean-Jacques Flori e Stéphane Tchalgadjief. Em pouco mais de 50 minutos os diretores retratam o universo particular de Fela Kuti, que vai desde suas raízes na Nigéria, sua mudança para Londres – e o que isso influenciou em sua vida -, sua ideologia, a luta em favor da liberdade e da igualdade entre as pessoas, a vontade dele em ser presidente de seu país, passando também pelo afrobeat e pela casa de shows e santuário musical – Afrika Shrine – que ele mantinha em Ikeja, na periferia de Lagos, ex-capital da Nigéria. Tudo isso com a intenção de desvendar ou pelo menos tentar entender um pouco quem foi Fela Anikulapo Kuti, o homem que carregava a morte no bolso – como sugere seu nome do meio.
Em certo momento de A música é a arma, o locutor questiona: “Quem é Fela? Alguns dizem que é o maior músico da África. Outros dizem que é um profeta. Outros ainda dizem que é um rebelde. Uma tribuna revolucionária. Seu nome era Fela Ransome-Kuti, o nome de um escravo. Desde de 1977 ele se chama Fela Anikulapo Kuti, o nome de um rei.”

Livros

José Luis Cabaço
São Paulo: Unesp, 2009

José Luis Cabaço mostra os conflitos culturais, as ideologias e as políticas que moldaram o país africano desde o período colonial até a luta emancipadora dos anos 60 e 70, quando opta pelo modelo socialista.


http://www.editoraunesp.com.br/titulo_vi...
Frantz Fanon
Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2005




http://www.editora.ufjf.br/editora/loja/...

Frantz Fanon
Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2005

Publicado em 1961, quando a guerra da Argélia desencadeava a violência colonial, serviu de referência para gerações de militantes anticolonialistas. Sua análise do traumatismo do colonizado no seio do sistema colonial e seu projeto utópico de um terceiro mundo revolucionário continuam sendo um grande clássico do terceiromundismo, obra capital e testamento político de Frantz Fanon.


http://www.editora.ufjf.br/editora/loja/...


Ishmael Beah
Rio de janeiro: Ediouro, 2007

Nos anos 90, Ishmael era um garoto de Serra Leoa que gostava de Shakespeare e de hip-hop e que teve aos doze anos a infância interrompida, quando a guerra civil chegou à sua aldeia.


Elikia M'Bokolo
São Paulo, Salvador: Casa das Áfricas, Edufba, 2009

Este volume I da África Negra: História e Civilizações cobre o período menos conhecido da história africana e um dos mais difíceis de abordar. Ver-se-á neste livro que este tempo longo do passado africano foi talvez o das invenções contínuas de laboriosas adaptações ou de rupturas radicais.

Manoel P. Ferreira e Greg Marinovich
São Paulo: Companhia das Letras, 2003

Durante os últimos anos do regime do apartheid na África do Sul, entre 1990 e 1994, quatro fotógrafos registraram os conflitos entre as facções negras do país. Apelidados de Clube do Bangue-Bangue por uma revista sul-africana, receberam prêmios internacionais, como o Pulitzer. Dois deles contam a história do clube e refletem sobre a ética que divide os fotógrafos entre a obstinação pela melhor foto e o desejo de interferir no acontecimento.As fotos do Clube contribuiram para chamar a atenção do mundo para o que ocorria na África do Sul e receberam prêmios internacionais, como o Pulitzer.


Joseph Ki-Zerbo
Rio de Janeiro: Pallas, 2006

O livro traz uma entrevista concedida pelo historiador Joseph Ki-Zerbo a René Holenstein, especialista em estudos africanos e em questões do desenvolvimento. Nesta obra Ki-Zerbo apresenta sua visão sobre questões como as armadilhas das teorias desenvolvimentistas e da globalização, ao mesmo tempo em que critica propostas de isolamento econômico e cultural.


http://www.pallaseditora.com.br/livro_c....

Nuruddin Farah
São Paulo: Companhia das Letras, 2003

Nuruddin Farah conta em 'Mapas' a história da infância e da adolescência de Askar. Tendo como cenário uma disputa territorial entre os dois povos, Farah traça um extraordinário retrato de sua gente e de sua terra, transportando o leitor para a Somália, país do chamado Chifre da África. Nessa bela e inóspita região, trava-se uma luta sangrenta, herança dos mapas traçados nos tempos coloniais. O foco da disputa é o Ogaden, território ocupado por tropas etíopes, mas com uma população de maioria somali.

Mia Couto
São Paulo: Companhia das Letras, 2003

O retorno de Marianinho a Luar-do-Chão não é exatamente uma volta às suas origens. Ao chegar à ilha natal, incumbido de comandar as cerimônias fúnebres do avô Mariano - de quem recebeu o mesmo nome e de quem era o neto favorito -, ele se descobre um estranho tanto entre os de sua família quanto entre os de sua raça, pois na cidade adquiriu hábitos de um branco. Aos poucos, Marianinho percebe que voltou à ilha para um renascimento.


Mia Couto
São Paulo: Companhia das Letras, 2005

Depois de um longo tempo de guerra civil, soldados das Nações Unidas estão em Moçambique para acompanhar o processo de paz. O romance narra estranhos acontecimentos de uma pequena vila imaginária, Tizangara, ao sul do país, onde militares da ONU começam a explodir subitamente.


Ahmadou Kourouma
Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2003

A história está centrada na figura de Birahima, um menino que se envolve nas guerras civis africanas quando, ao ficar órfão, atravessa parte do continente em busca da tia. A história se passa em meio aos conflitos da Libéria e de Serra Leoa ocorridos nos anos de 1990.
www.estacaoliberdade.com.br/releases/ala.htm

Michel Leiris
São Paulo: Cosacnaify, 2007

Este livro é um extraordinário diário que registra o cotidiano da Missão Etnográfica e Lingüística Dacar-Djibuti (primeira iniciativa francesa de investigação etnográfica na África, ocorrida entre 1931 e 1933, que cortou a África do Atlântico ao Mar Vermelho. Uma síntese da pluralidade de interesses que marcou a vida de Michel Leiris, escritor, poeta e antropólogo.


http://www.cosacnaify.com.br/loja/detalh...


Tayeb Salih
São Paulo: Planeta, 2004

Neste romance, conta-se a história das viagens e visões de Mustafa Said, que se encontra dividido entre dois continentes. Mustafa Said é órfão de pai e, quando jovem, abandona a mãe e parte para Londres, onde se destaca profissionalmente. Mas a visão dos britânicos sobre o continente africano e sua própria condição de expatriado são motivos que causam revolta e decepção em Mustafa.

Alaa Al Aswany
São Paulo: Companhia das Letras, 2009

No início do século XX, o elegante Edifício Yacubian era habitado por ministros de Estado e estrangeiros. Ao longo dos anos, as reviravoltas políticas transformaram o edifício e o centro do Cairo num cenário decadente. Passadas durante a Guerra do Golfo, as histórias deste livro traduzem os dilemas de um país que, após décadas de submissão ao Ocidente, tornou a orientalizar-se.


http://www.companhiadasletras.com.br


Chimamanda Ngozi Adichie
São Paulo: Companhia das Letras, 2008

A obra enfeixa várias pontas do conflito que matou milhares de pessoas na Nigéria em virtude da guerra que se seguiu à tentativa de secessão e criação do Estado independente de Biafra.


http://www.companhiadasletras.com.br/web...

Nos Territórios de Amkoulleu, O menino Fula

Mulheres fula das margens do rio Bani
“Meus longínquos ancestrais paternos aí chegaram por volta do fim do século XV. Instalaram-se na margem direita do Bani (afluente do Níger), entre Djenné e Mopti, na região denominada Fakala, ou ‘para todos’, pois os fulas ali coabitaram com diversas etnias locais: bambara, marka, bozo, somono, dogon etc.”











Tintureiras malinquês

          






                                                
Mulher Saussai
 Mulher uolofe

Mulher saussai
Mulher uolofe

 Mulheres levando lenha ao mercado

Pilagem do milhete – se faz moendo as espigas em pilões de madeira



Fiandeiras de algodão
Mulher malinquê fabricando potes

Um canto do mercado



Bijagós: sociedade matriarcal? Paula Fortes


Conhecida por sua lealdade, gentileza, honestidade, respeito pelo outro e, sobretudo, pelos mais velhos, a etnia Bijagó é um grupo de referência na Guiné-Bissau - país que abriga em seu pequeno espaço geográfico (36.125km²) cerca de 30 grupos étnicos. Esta etnia dá nome ao conjunto de 80 ilhas que formam o Arquipélago dos Bijagós. Único arquipélago deltaico da costa oeste africana, classificado em 1996 pela UNESCO como Reserva da Biosfera, os Bijagós representam 70 por cento da população que ali habita e o modo de vida que eles desenvolvem em harmonia com a natureza explica o seu estado de conservação.

João José Utiron, em seu trabalho intitulado Inter-relações entre linguagem, cognição e cultura: Os acordos interpessoais em bijagó, relata que a origem do termo bijagó seria na verdade uma corruptela do termo original aujôco que quer dizer indivíduo ou pessoa, em oposição aos animais irracionais. E que os prováveis suspeitos de promover essa incorrecção teriam sido os portugueses, visto que todos os outros grupos sociais guineenses denominam os Bijagós de unsongron, vocábulo que faz referência à ideia dos traços identitários do grupo: indivíduos de grande porte, robustos, gigantes, valentes.

A sociedade Bijagó é estruturada em faixas etárias, desde tenra idade as pessoas são divididas como tal. Para cada grupo etário existe uma denominação - diferente para homens e mulheres - e cada um se caracteriza por uma indumentária, músicas e danças definidas, sem contar com o trabalho produtivo inerente a este grupo. Existe também uma relação de respeito e obediência total àqueles que lhe são superiores, ou seja, os mais velhos.

A origem de tudo

...e tudo começou assim: Deus, o Criador, existiu sempre, e no início, da vida foi criada a primeira ilha - a ilha de Orango - que era o mundo. Mais tarde chegou um homem e sua mulher, de nome Akapakama. Eles tiveram quatro filhas a que deram os nomes de Orakuma, Ominka, Ogubane e Oraga. A seguir surgiram os animais e plantas.

Cada uma das filhas de Akapakama teve por sua vez, vários filhos, os quais receberam, por parte do avô, direitos especiais. Os de Orakuma receberam a terra e a direcção das cerimónias nela realizadas, bem como o direito de fazer as estatuetas do Irã[i], tendo sido a primeira executada por Orakuma e feita à imagem do Deus. Este direito seria também dado por Orakuma às suas irmãs.

Os de Ominka receberam o mar e passaram a ocupar-se da pesca. Os de Oraga receberam a natureza com as bolanhas e as palmeiras, o que lhes daria a riqueza. Os de Ogubane receberam o poder da chuva e do vento podendo desencadeá-los, controlando assim o suceder das épocas da seca e da seca e das chuvas. Assim, as quatro irmãs desempenhavam funções diferentes, mas que se complementavam.

Esta é a lenda da origem do mundo segundo os Bijagós; o extracto do trabalho Guiné-bissau - Aspectos da Vida de um Povo de Eva Kipp mostra-nos a importância atribuída às mulheres naquela sociedade e pode assim explicar o facto de muitos considerarem esta sociedade como sendo um matriarcado.
O termo matriarcado deriva, respectivamente, do latim e do grego, onde mater faz referência à mãe e archein (arca) a governar, reinar. Assim sendo, a sociedade dita matriarca é o tipo de sociedade onde o poder é exercido pelas mulheres, em especial pelas mães; o facto de dar à luz confere à mulher o estatuto mais elevado da hierarquia familiar.

Poucas sociedades no planeta são matriarcais. Um exemplo vem do noroeste da Índia, de um povo chamado Khasi. Nesta sociedade o sobrenome que identifica uma família vem da mãe (matrilinearidade) e é somente através das mulheres que o clã se perpetua. Assim sendo, as mulheres são as únicas herdeiras. Sua superioridade em relação aos homens é tal que, no caso de uma família não ter condições para oferecer a todos os seus filhos a oportunidade de ir à escola, a preferência é dada às meninas, ficando os meninos analfabetos.

O sócio-antropólogo Raul Fernandes acredita que a sociedade Bijagó não é matriarcal. Segundo ele, o sistema patriarcal exerce-se diferentemente em várias partes do mundo e, no caso dos Bijagós, há algumas particularidades na forma como o patriarcado acontece; que está estritamente ligado ao grau de estruturação que as mulheres Bijagós têm e que se deve, em grande medida, à forma como elas se organizam, ou como a sociedade organizou o seu processo de socialização.

"As mulheres mantiveram entre si certas formas de transmissão do saber e de organização da sociedade muito ligadas à idade mas também às formas de cerimónias e ao religioso. E isso dá uma certa coesão ao grupo das mulheres que conseguem ganhar uma autonomia cerimonial e religiosa, e faz com que elas possam estar presentes nas suas relações com as entidades e outras formas de poder masculino numa situação de poder discutir direitos face-a-face."

Nos Bijagós, o religioso é exercido tanto por homens como por mulheres e estas não precisam da intervenção dos homens para poder entrar em contacto com o sobre-natural. Não é como certas religiões em que a mulher não pode entrar na igreja ou então estão completamente cobertas ou são colocadas em papéis secundários.

Na sociedade Bijagó, a mulher tem poder para decidir como é que se faz a cerimónia, quais os rituais, para que fins, em que momento e é seguida por um grupo de mulheres que, durante um certo tempo, não se dedicam ao trabalho produtivo ao qual estão tradicionalmente destinadas mas a si próprias. Entre si discutem o que acharem conveniente, dentro de determinadas regras sociais que são postas aos Bijagós, mas só entre si; e isso por vezes pode levar meses. O tempo, só elas é que decidem.

Assim, é importante citarmos o rito de iniciação feminina chamado de cerimónia de Dufuntu [ii] (Orbok, em bijagó). As jovens entre os 17 e os 25 anos recebem a reincarnação da alma de uma pessoa que já faleceu e esta transformação simbólica das mulheres em homens é mencionada, pelo sócio-antropólogo, como uma forma de apropriação do poder dos homens e da sua utilização para um maior equilíbrio entre os poderes masculino e feminino. Ainda durante esta cerimónia, as jovens recebem ensinamentos para a vida futura que lhes são transmitidos pelas mulheres grandes da tabanca [iii]; não se pratica excisão.

Segundo Raul Fernandes, as pessoas confundem o matriarcado e a matrilinearidade; que são duas coisas distintas. O que acontece na sociedade Bijagó é que as filhas, mesmo depois de casadas, permanecem próximas das mães porque quem atribui estatuto de família é a mãe pela linha uterina (matrilinearidade). Esta ligação é mais forte entre a mãe e a filha visto que, diferentemente do que acontece na patrilinearidade - onde as mulheres a partir do momento em que se casam saem do seu círculo familiar original e passam a ser membros da família do marido, sujeitas às regras da casa do marido -, a filha não se distancia muito da sua mãe.

Se a lealdade, gentileza, honestidade e o respeito pelo outro, tão próprios do povo Bijagó, tem a ver com a forma como esse povo se organiza, dando uma posição de destaque às mulheres, o que talvez não seja possível de provar mas é um factor incontestável. Quem conhece os Bijagós não deixa de se apaixonar, pelo povo e pelo lugar em que ele se estabeleceu. Visitá-los é comprar passaporte para lá voltar. Não há como não se orgulhar do povo e, principalmente, das mulheres Bijagós.

http://www.buala.org/pt/a-ler/bijagos-sociedade-matriarcal

fotografias de Marta Lança

publicado inicialmente na Kampuni

[I] Espírito sagrado ou deus animista

[II] Defunto

[III] Aldeia

Entrevista com Dr. Carlos Moore Weddrburn

CARLOS MOORE: PALAVRAS ESSENCIAIS!

Gramática da Ira tem o prazer de receber aqui, para uma conversa franca e contundente, o Mestre Carlos Moore. Esperamos, com isso, aprofundar algumas discussões que temos levantado. Há um grande interesse de nossa parte em compreender e divulgar a questão da negritude em Cuba, na diáspora e continente africano. Para tanto são muito esclarecedores os relatos de experiências vividas e as análises sócio-políticas que o mestre faz, não só do regime revolucionário cubano, no que toca mais diretamente a causa negra, mas de muitas questões que extrapolam as barreiras nacionais.

Nosso mestre fala um pouco de sua trajetória de exílios até sua permanência em Salvador, na Bahia, sua morada atual. A partir daí, segue uma conversa inspiradora sobre grandes questões como literatura, música e muito mais. Com emoção, Carlos Moore destaca companheiros de trajetória que se tornaram célebres.

Dedica profundas palavras a dois dos homens que tanto colaboraram para a formatação do ativismo negro contemporâneo no mundo inteiro. Trata-se dos fenomenais Aimè Césaire e Fela Anikulapo Kuti. O primeiro fundador da Negritude, movimento que revolucionou as relações raciais no século XX. O segundo um músico extraordinário que desenvolveu o incrível afro-beat. Ambos, além da reviravolta que causaram com sua arte, tiveram uma atuação política vigorosa contra os opressores do continente africano e da diáspora negra. Carlos Moore explica a importância dos dois para as lutas negras atuais.

Carlos Moore nasceu e cresceu em Cuba. Doutor em Ciências Humanas e Doutor em Etnologia da Universidade de Paris-7 na França, ele é atualmente Chefe de Pesquisa (Sênior Research Fellow) na Escola para Estudos de Pós Graduação e Pesquisa da University of the West Indies (UWI), Kingston, Jamaica.

Ele foi consultor pessoal para assuntos latino-americanos do Secretário Geral da Organização da Unidade Africana (atualmente União Africana), Dr. Edem Kodjo, de 1982 a 1983, e consultor pessoal do Secretario Geral da Organização da Comunidade do Caribe (CARICOM), Dr. Edwin Carrington, de 1966 a 2000. Foi assistente pessoal do professor Cheikh Anta Diop, diretor do Laboratório de Radiocarbono do Instituto Fundamental da África Negra, de 1975 a 1980, em Dakar, Senegal.

Autor de cinqüenta e cinco artigos publicados sobre questões internacionais, seus livros são: Pichón: Race and Revolution in Castro´s Cuba (Chicago: Lawrence Hill Books, 2008); A África que Incomoda (Belo Horizonte: Nandyala Editora, 2008); Racismo & Sociedade (Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007); African Presence in the Americas (Trenton NJ: Africa World Press, 1995), redator principal; Castro, the Blacks, and Africa (Los Angeles, CA: CAAS/UCLA, 1989); This Bitch of a Life (London: Allison e Busby); Cette Putain de Vie (Paris: Karthala, 1982).

Agradecemos, novamente, ao Mestre Carlos Moore, pelas respostas desdobradas respeitosa e cuidadosamente ao Gramática da Ira.

Nelson Maca - Blackitude.Ba.

Gramática da Ira (GI) - Professor Carlos Moore, antes de tudo, é uma honra para nós entrevistar um homem de sua envergadura histórica e importância política. Um negro que, apesar de uma vida tão aguerrida, soube permanecer lúcido e incorruptível. Além do mais, simples e acessível aos que chegam. Professor, diz pra gente como o Senhor gosta de ser apresentado na intimidade e nos espaços das várias lutas que tem sido sua vida.

Carlos Moore (CM) - Obrigado pelas considerações singelas. A auto-definição é sempre problemática, porque os humanos têm uma marcada tendência a se projetar de maneira exclusivamente positiva. Ora, a realidade não é sempre essa. Eu tenho cometido tantos erros na minha vida política e na minha vida pessoal, que para me definir completamente, implicaria a admissão desses erros. Eu me vejo como uma pessoa que teve de lutar muito para adquirir a identidade racial, a serenidade humana, que possuo hoje. Por isso, eu me auto-defino, fundamentalmente, como um crítico social, como um militante das causas sociais. Me sinto muito privilegiado, como militante, porque tive a honra de ter militado ao lado de homens e mulheres hoje considerados como ilustres: Malcolm X, Cheikh Anta Diop, Aimé Césaire, Maya Angelou, Stokely Carmichael, Lelia Gonzalez, Walterio Carbonell, Abdias Nascimento, Harold Cruse, Alex Haley, e tantos outros e outras. Todas essas figuras ocuparam um lugar importante no combate que, ao meu ver, constitui a maior das causas sociais que a humanidade tem sido obrigada a sustentar: o combate contra o ódio racial, contra a opressão racial, e contra as discriminações e vexames de todo tipo que são inerentes a esse fenômeno criado pela história das relações dos humanos entre si. Sinto orgulho de tê-los acompanhado nessa trajetória de combate por um mundo melhor para todos nós.

GI- Por que o Senhor escolheu o Brasil para viver atualmente, e, mais especificamente, por que Salvador?

CM- Porque no Brasil me sinto perfeitamente em casa e em família. É uma questão de sentimento, o que é algo eminentemente subjetivo. Não estamos falando do terrível drama que constituem as abissais desigualdades sociorraciais existentes no Brasil. Há poucos países nos quais eu me sinto realmente em casa: o Senegal, o Haiti, a Trinidad e, naturalmente, a Cuba. O Brasil é um desses países onde eu não me sinto como um estrangeiro, mas como se tivesse nascido nele. Salvador é, para mim, como a terra que me viu nascer. Amo muito essa cidade, o povo, o jeito, as ruas, os prédios, o mar. Porém, tenho decidido morar no Brasil até o momento do meu retorno a Cuba. E quando esse dia chegar, sei que irei embora com muita tristeza no meu coração, pois o Brasil tem se convertido, também, no meu país.

GI- O Senhor é conhecido, internacionalmente, como um dissidente do regime cubano de Fidel Castro, principalmente por questões que envolvem os conflitos raciais. O Senhor pode nos falar um pouco sobre sua percepção histórica desses conflitos, e como tem sido sua relação com os ativistas marxistas do movimento social negro que admiram profundamente a revolução cubana?

CM- Teria que escrever todo um livro para responder a isso, o que já fiz em Pichón: Race and Revolution in Castros’s Cuba (Raça e Revolução na Cuba castrista), que acaba de ser publicado nos Estados Unidos. A minha disputa com o regime Cubano foi violenta porque esse regime decidiu que ele não tinha por que discutir com um “bando de neguinhos equivocados”, como a liderança castrista nos qualificou. Eles pensaram que, como eles eram brancos, inteligentes, marxistas e antiimperialistas, nós, negros, só tínhamos que nos alinhar sob comando deles, e seguir as instruções políticas que eles nos davam. Ou seja, que deveríamos arriscar as nossas vidas no combate contra o inimigo imperialista, e, claro, trabalhar para edificar a nova sociedade socialista. Mas, como bons soldados negros marxistas, devíamos nos calar no que diz respeito aos problemas da sociedade cubana, sobre as grandes decisões políticas, e seguir as instruções dos nossos dirigentes super-inteligentes. Mas, nós que tínhamos outra idéia da Revolução, achamos que havia algo de errado nessa relação que nos propunha a liderança castrista – composta em mais de 95% por brancos provindos da alta burguesia e da classe media cubana. Pensávamos que havia que encarar a situação racial em Cuba como primeiro passo na construção do socialismo e da igualdade, mas essa liderança respondeu que em Cuba não havia racismo; que vivíamos numa “sociedade mestiça” onde todos os cubanos eram “mulatos”; que o socialismo estava “além da raça”, e que a única cor na Cuba revolucionaria era a “Cor Cubana”. Claro, compreendemos que se tratava da demagogia de sempre, a mesma que tinha sido usada durante todo o período republicano anterior, e que a liderança revolucionária tinha recuperado, para elaborar uma nova ideologia mentirosa baseada numa suposta “pos-racialidade socialista”. É por isso que o movimento negro Cubano daquele momento, ou seja, o período de 1959 até 1965, chocou-se, quase de imediato, com a nossa liderança revolucionária. Esta última estava composta por homens e mulheres que usufruíam de grande prestígio, dentro e fora do país, e que estava liderada por um dos grandes gênios políticos do século XX: o Fidel Castro Ruz. Sabíamos disso, mas também sabíamos que Fidel Castro Ruz não era Deus, e que mesmo se ele o fosse, ele estava cometendo uma barbaridade em relação à questão racial. Assim, todos aqueles que levantaram as suas vozes para alertar o regime revolucionário que ele estava levando Cuba por um caminho errado no que diz respeito à questão racial, fomos catalogados como “negros ingratos” e, finalmente, como “racistas negros” e “negros contra-revolucionários”. A partir daí, a impossibilidade de diálogo com o regime se tornou patente, e terminou em confronto. Como as forças em presença eram desiguais, pois eles tinham o poder do Estado e nós somente o poder das nossas idéias, nós fomos impiedosamente esmagados. Em resumo, isso foi o que aconteceu. Fidel Castro, Che Guevara e Raúl Castro tinham sido elevados ao estatuto de Deuses gregos. Ninguém que tivesse idéias diferentes aos deles tiveram o direito de ser ouvidos. Nós, dissidentes revolucionários negros, devíamos nos prostrar diante deles de maneira obsequiosa, submissa e covarde, ou ser esmagados. Então, fomos detidos, enviados para as cárceres abomináveis que o regime já tinha aberto, ou para os diferentes campos de trabalho forçado que já existiam no país, ou enviados para a destruição mental nos hospitais psiquiátricos. O mais célebre desses casos foi o do grande pensador Walterio Carbonell, demolido num manicômio. Cinqüenta anos tiveram de transcorrer para que o mundo começasse a se perguntar o qué é que estava ocorrendo em Cuba com a população negra majoritária? Foram cinqüenta anos de defesa do “paraíso pós-racial” cubano pela esquerda toda, branca ou negra. Inclusive, essa novela continua sendo de atualidade em praticamente toda a chamada América Latina - principalmente em países como o Brasil - onde a esquerda é de um infantilismo racista digno de estudo pelos psicanalistas. Eles pensam que os Cubanos negros não tem o direito de se opor a um regime que os oprime de um jeito similar à maneira em que os militares oprimiram aos brasileiros durante duas décadas. Não tão somente em América “Latina” mas no mundo inteiro, essa esquerda marxista tem problemas sérios quanto à analisar a questão racial, ou quanto a se relacionar com os negros, individualmente, ou como coletividade racial que tem um percurso histórico singular.

GI- Pichón é o primeiro volume de uma trilogia sobre seus 50 anos de vida política ativa, não é? Por que esse título? O Senhor poderia nos detalhar um pouco mais a questão? Há alguma possibilidade em vista dele ser traduzido para o Português? (Disponível no http://www.amazon.com/).

CM- Pichón é uma narrativa na primeira pessoa, sobre a vida em Cuba, antes e depois da Revolução de 1959. É uma narrativa que conta o que era a Cuba de antes de 1959 – uma Cuba horrorosa, onde a população negra vivia sob uma espécie de regime neofascista, e onde o racismo funcionava do mesmo jeito em que funciona atualmente no Brasil. Ou seja, um racismo surreptício, sempre insidioso, hipócrita e covarde, que se esconde convenientemente sob uma máscara de “democracia racial” e de “cordialidade racial”, mas que exerce uma violência sistemática contra os negros em todos os âmbitos da vida quotidiana. Na Cuba antes da Revolução, se eliminava os jovens negros do mesmo jeito que eles ainda são eliminados e reprimidos na Colômbia, no Brasil, no Peru e no resto da chamada “América Latina”. A Cuba pré-castrista foi um inferno, em todos os sentidos, e Pichón demonstra isso. E logo veio a Revolução, com dirigentes nacionalistas e imbuídos de um sentido de justiça social, mas também imbuídos do sentimento que eles eram racialmente superiores à população NEGRA cubana que nesse momento constituía ao redor de 45% do total. Ora, aconteceu algo que Fidel Castro e seus companheiros não tinham esperado, nem muito menos planejado: a defecção massiva e fuga para os Estados Unidos de entre 15% e 20% da população branca da ilha, maiormente a burguesia e uma parte enorme da classe media cubana. Assim Fidel Castro começou a mexer na estrutura agrária de Cuba, ou a falar da necessidade de redistribuir a renda nacional de uma maneira mais equitativa, aqueles que o levaram ao poder – ou seja, a burguesia branca Cubana da qual ele era parte – se virou contra ele e se colocou ao serviço dos americanos. Foi isso o que aconteceu. Assim, a fuga para o exterior de entre 15% e 20% da população branca, entre 1959 e 1962, produz uma extraordinária revolução demográfica em Cuba, e deixou a Fidel uma maioria negra nas mãos. O país passou, em quatro anos, de uma maioria branca para uma maioria negra que, a partir daí continuou a crescer. Ou seja, que Fidel Castro nunca tinha sonhado, ao iniciar a Revolução, que ele terminaria estando à frente de uma nação negra! Aqueles que conhecem a história de Cuba sabem que esse tem sido o pavor da população branca em Cuba ao longo dos séculos, e que ele tem sido rotulado como “Peligro Negro.” Ora, no meio de todas essas transformações, o movimento negro pré-existente à Revolução, começou a exigir a sua inclusão na direção política. Mas o medo aos negros como tal foi mais forte entre a direção castrista que seu ânimo de mudar a sociedade. Muitos revolucionários Marxistas ficaram traumatizados diante da nova situação e reagiram com inusitada vigor contra qualquer manifestação de Negritude por parte dos revolucionários negros. A repressão se abateu sobre o que havia em Cuba como Movimento Negro, e seus lideres foram forçados ao exílio, ou internados nos campos de trabalho forçado, ou destruídos nos hospitais psiquiátricos onde lhes foram administradas substâncias químicas que destruíam seu raciocínio. Tal foi o caso horrível do maior ideólogo negro cubano: Walterio Carbonell. O Dr Juán René Betancourt Bencomo, dirigente nacional de todos os grêmios negros (Sociedades de Cor), salvou a vida, fugindo para o exterior, onde morreu pouco depois. Na realidade, poucos foram os intelectuais, artistas ou acadêmicos dissidentes negros – como Manolo Granados, Enrique Patterson, ou Reinaldo Barroso – que puderam fugir Cuba. No que se refere a mim, após ter sido detido, e, logo depois de ter sido internado num campo de “reabilitação” (eu não conheci a experiência dos terríveis campos UMAP que conheceram os outros), logrei fugir para dentro da embaixada da Guiné, e, sob a proteção diplomática de quatro embaixadas da África, fui tirado de Cuba, em novembro de 1963. A partir daí, começa uma luta dura, de fora, contra o Estado cubano que durou trinta e quatro anos, e nela quase perdi a vida. Nem sei como foi que escapei à destruição. E, no final dos anos noventa, quando o regime castrista já tinha perdido o apoio do império soviético, e que a situação interna tinha-se voltado bastante convulsa por causa da crise econômica, o regime cubano deu uma meia-volta e me autorizou a voltar. O regime me restituiu o passaporte e me autorizou a visitar o país, mas não morar nele. Eu, até hoje, não tenho o direito de morar no meu próprio país. E continuo sob alta vigilância dos serviços secretos de Cuba, mesmo no Brasil. Mas, mesmo assim, não calei, nem calarei a boca. É essa, em resumo, a história que eu conto em Pichón.

GI- Que outros textos e livros o Senhor já lançou no mercado internacional que podem nos auxiliar na compreensão do dilema racial brasileiro?

CM- Todos os meus trabalhos tratam de algum aspecto da questão racial, ou da luta emancipadora dos povos africanos ou da origem africana de todos os povos do planeta. O meu primeiro trabalho não foi propriamente um livro, mas um longo ensaio sobre a questão racial e a Revolução cubana. Ele foi publicado, em Paris, em 1965, pela revista Présence Africaine, sob o titulo: “Les Noirs-ont-ils leur place dans La Révolution Cubaine?” (Qual o lugar dos Negros na Revolução Cubana?). Foi esse documento que deflagrou a guerra aberta com o regime e que me valeu às acusações, pelo regime cubano e seus seguidores, de ser um “agente do imperialismo” e um “agente da CIA”. Ora, o meu primeiro livro sobre esses problemas só foi publicado em 1970: Were Marx and Engels Racists? (Marx e Engels eram racistas?). Foi a minha primeira análise teórica da questão racial sob a ótica do que os fundadores do marxismo tinham dito sobre a questão racial. Claro, esse trabalho foi condenado massivamente pelos marxistas e os esquerdistas porque a tese que sustentava essa obra se resumia à conclusão de que o marxismo carecia de bases teóricas para compreender o racismo e muito mais para resolvê-lo. O segundo livro, This Bitch of a Life (Esta Puta Vida), publicado em 1982, foi a biografia de Fela Kuti, o grande líder panafricanista e compositor nigeriano. Eu queria que a mensagem desse extraordinário líder e artista atingisse o resto do mundo. O terceiro livro, Castro, the Blacks and Africa (Castro, os Negros e a África), publicado em 1989, é a primeira análise profunda da questão racial em Cuba sob a Revolução. Nele, analisei impacto da situação racial interna sobre a política internacional de Cuba, especificamente voltada para o continente africano. O quarto livro, African Presence in the Americas (A Presença Africana nas Américas), publicado em 1995, e uma coletânea de textos, sendo um do fundador do movimento da Negritude, Aimé Césaire, falecido na Martinica em 2008. O quinto livro, From Comecon to Caricom (Do Comecom ao Caricom), é também uma coletânea de textos, publicado em 1999, analisando a situação de Cuba após a queda do mundo Comunista. O sexto e sétimo livros, Racismo & Sociedade e A África que Incomoda, foram publicados respectivamente em 2007 e 2008, no Brasil. Essas duas obras são as únicas que se encontram disponíveis em Português. O oitavo livro é Pichón; Race and Revolution in Castro’s Cuba (Pichón: Raça e Revolução na Cuba castrista), lançado nos Estados Unidos em novembro de 2008. Ele é parte de uma trilogia que narra os acontecimentos no mundo dos últimos 50 anos, na perspectiva de um militante negro. E, nestes momentos, estou terminando A última Fronteira do Ódio, que é uma análise histórica do racismo que prolonga e expande as reflexões iniciadas em Racismo & Sociedade. Acho que uma vez terminada essa última obra, mas aquelas duas outras que pertencem à trilogia iniciada com Pichón, vou dar uma paradinha. Ou seja, resumindo: ainda tenho três obras a terminar. Acho que após ter terminado essas três últimas obras, terei cumprido com a minha “missão” no sentido político e humano.

GI- O Senhor foi publicado em livro, recentemente, em português. Um dos desses livros é Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo (Mazza Editora). O Senhor aborda o Racismo e a Escravidão como elementos que não tem a mesma origem histórica. Fica evidente seu objetivo de rediscutir esses conceitos a partir de novos paradigmas. O senhor poderia nos responder duas questões: a) qual o objetivo e como nasceu o projeto deste livro no Brasil; b) como o Senhor coloca, categoricamente, os conceitos acima destacados?

CM- Acho que os militantes, particularmente, deveriam reservar um pouco do seu tempo para se documentar sobre algo tão importante como o surgimento e evolução do racismo na história. É disso que trata Racismo & Sociedade. A idéia do livro surgiu de um pedido por parte de Eliane Cavalleiro e de Luiza Bairros, ambas militantes de primeira linha do movimento negro brasileiro. Eu vinha discutindo dessas questões com a Luiza, com o Silvio Humberto dos Passos Cunha, com o Durval Azevedo, e outros, desde a minha chegada no Brasil. Luiza pensou que era necessário que eu entregasse à sociedade o resultado das minhas pesquisas de várias décadas na Ásia, no Pacífico e na Europa, e assim discutiu com a Eliane Cavalleiro sobre isso. Nesses momentos, Eliane estava na frente da SECAD, o órgão do Ministério de Educação encarregado de fazer cumprir a Lei 10.639/03. E o livro se fez graças ao financiamento desse órgão e da Casa das Áfricas, dirigida pela professora Daniela Moreau. O Instituto Steve Biko, sob a direção do professor Silvio Humberto, acolheu o projeto, e negociou diretamente com a SECAD para levá-lo à materialização. Mas, para se eu resumir as conclusões que eu proponho nessa obra, o faria da maneira seguinte: a) o racismo é uma secreção histórica, portanto um dado permanente da sociedade, e não uma construção ideológica facilmente reversível, nem muito menos uma aberração psicológica; trata-se de uma forma de consciência historicamente conformada que, ao longo dos séculos, se tornou num sistema perfeitamente racional, baseado na procura, detenção e distribuição monopolística dos recursos da sociedade e na sua repartição seletiva e desigual segundo o pertencimento a um ou outro “segmento fenotípico” (raça); b) o racismo é um sistema de poder total, que se exerce por meio do controle, também monopolístico, das instâncias políticas da sociedade, o qual permite à raça dominante ditar as regras de como deve funcionar a economia, e por tanto, de como devem ser distribuídos os recursos: para o beneficio exclusivo ou preponderante do segmento fenotípico que usufrui do poder, e para o detrimento total daqueles segmentos fenotípicos que são excluídos dele; c) o racismo, portanto, não é unicamente um problema de relações interpessoais, nem de valores morais ou religiosos, e muito menos de simples preconceitos, mas um sistema coerente de dominação, com uma enorme longevidade que lhe permite ser elástico, totalmente transversal e abrangente; ele funciona maravilhosamente bem para a raça que o desenhou, e só é negativo para a raça que sofre seu impacto pulverizador e esmagador; d) o racismo se baseia numa realidade concreta e real, não imaginada: o fenótipo dos humanos; portanto raça existe e se define concretamente, mas não no sentido da biologia genética, e sim no sentido da interpretação política e social que se faz do fenótipo de certas populações humanas em relação às outras, e cuja interpretação se encontra fixada no imaginário por via de processos complexos de simbologização. Desse modo, chegamos à conclusão que, contrariamente ao que temos por costume de pensar, a escravidão racial que foi imposta nas Américas, os tráficos negreiros, o aviltamento da raça negra, não produz o racismo, senão que, pelo contrário, foi a preexistência do racismo - surgido em várias regiões geográficas, sem conexão uma com as outras, ou seja, em várias civilizações diferentes do mundo - que deu como resultado o surgimento da escravidão racial, fenômeno singular na história na medida que só foi conhecida pelas pessoas de raça negra. Há que entender bem que não estamos falando somente da escravidão como categoria econômica, generalizada ou parcial, e que a conhecera praticamente todas as sociedades produtoras de excedente na antiguidade, mas daquela escravidão imposta exclusivamente aos povos de raça negra, precisamente por serem negros, e por causa do seu pertencimento a um segmento da humanidade facilmente reconhecível pelos seus traços fenotípicos. A raça é questão de fenótipo, e o racismo também. Como argumentar, então, que a escravidão imposta aos africanos, pelos árabes, a partir do século VIII, e pelos europeus, à partir do séculos XVI, fora racialmente neutra? A pesquisa histórica derruba essa visão reconfortante, mas simplista demais. Essas são algumas das conclusões apresentadas em Racismo e Sociedade.

GI- Outro lançamento recente em Português é A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro (Ed. Nandyala). Qual o objetivo deste trabalho? Com que platéia este livro pretende dialogar?

CM- O objetivo desse livro é chamar a atenção da população negra brasileira, especialmente seus quadros intelectuais e políticos, sobre a necessidade urgente de começar a se familiarizar com a África concreta, pois é essa a África que está na mira das multinacionais chinesas, americanas, japonesas, européias, indianas e brasileiras. Há que compreender a posição da África no mundo, e compreender o papel crescente do Brasil nesse mundo, para não acordar um dia com uma grande surpresa: descobrir que estamos dentro de relações perfeitamente neo-colonialistas com o nosso próprio continente ancestral, e que nós mesmos somos os instrumentos de um novo imperialismo que não seria desta vez o imperialismo norteamericano. O Brasil está emergendo como grande potência no mundo, ao lado da China, da India, do Irã, da Turquia e do Paquistão e devemos começar desde já a tornar os olhos para todas implicações, internas e externas, dessa expansão brasileira. E o outro lado da moeda é a análise que devemos fazer no que diz respeito às elites oligárquicas que dominam a vida dos povos africanos de maneira tão desastrosa e prejudicial para todo o continente. Há que estar cientes dessas realidades todas e não se deixar arrastar nem pela ingenuidade, nem pela emoção, nem pelo chauvinismo nacionalista. Há que olhar para o futuro, interrogar o passado, e delinear o contorno do nosso presente, tudo ao mesmo tempo. Acho que os intelectuais e investigadores estão lá para alertar à sociedade sobre os perigos que ela corre. Os intelectuais não devem se deixar intimidar pelos governos, nem pelas instituições oficiais, e devem, sim, em todas as circunstâncias, exercer uma função crítica.

GI- Em todo o Brasil, o Senhor tem feito palestras, conferências e cursos que envolvem questões ligadas ao panafricanismo e à história do movimento social negro no mundo. Que conteúdos são mais solicitados ao Senhor pelos produtores e expectadores nesses eventos? Como o Senhor avalia essas necessidades intelectuais, principalmente dos ativistas do movimento social negro?

GM- A meu ver, o problema fundamental aqui, no Brasil, como em todas as Américas, especialmente em Cuba, é o problema da convivência entre as raças, a existência da opressão racial, das discriminações em base à raça. Enfim, toda a problemática essa que gira em torno da pretensão de um grupo de humanos a monopolizar os recursos em detrimento de todos os outros, sob o argumento que ele representa um segmento superior da espécie humana, e que todos nós não somos senão subespécies destinadas a servir de escravos, babás, serventes, seguranças, e todo o resto que sabemos. É disso que se trata nas minhas palestras, nas quais trato de explicar a questão racial a partir de uma perspectiva histórica, e não somente como uma questão de conjuntura. Acho que as mentes estão se abrindo, no Brasil, como conseqüência de dois fatores: a ação que vem desenvolvendo o Movimento Negro desde há varias décadas, e as medidas positivas que tomou o governo Lula desde que tomou o poder. Sabemos que são medidas tímidas, considerando a dimensão gigantesca do problema a ser resolvido, mas são passos na boa direção que um regime revolucionário como o de Cuba não se atreve ainda a dar.

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GI- Professor Carlos Moore, o Senhor conviveu, irmanadamente, com um dos artistas populares mais criativo e polêmico de toda a história: o nigeriano Fela Anikulapo Kuti. Desta convivência surgiu um livro de sua autoria chamado This Bith of Life (algo como Esta Puta Vida). Onze anos após sua morte, Fela Kuti vem sendo redescoberto em todos os continentes. É considerado, hoje, uma espécie de "Bob Marley" do Continente Negro. Na França e Inglaterra, está em alta, com direito, inclusive, a grandes exposições temáticas. Nos EUA, entre tantas ações, teve, no último dia 04 de setembro, a estréia de uma peça baseada no perfil do artista no Off Broadway Theater, a ante-sala da Broadway, para onde a peça seguirá com certeza. Sabe-se que, no mundo, apenas a partir da biografia de sua autoria, entre 15 e 20 trabalhos, principalmente em áudio-visual, vem representando a trajetória de Fela. De minha parte, penso que o seu livro, dentre outros, é vital para oxigenar a arte e o ativismo negro no Brasil, principalmente na cultura que participo mais pontualmente: o hip hop. Qual a real importância da história musical e política de Fela, o que significa para o Brasil conhecer mais a fundo sua experiência radical?

CM-Em uma palavra: não se pode realmente pretender ser culto, e muito menos culto nas questões do Mundo Negro, sem conhecer a obra e o pensamento de Fela Kuti. Fela foi um dos grandes ativistas e pensadores do panafricanismo no século XX. O que o distingue dos outros pensadores panafricanistas é que ele desenvolveu a luta panafricanista não no contexto da luta pela descolonização, mas dentro da problemática complexa e terrível que representa a sociedade africana pós-colonial; ou seja, uma sociedade controlada, oprimida e esmagada não diretamente pelas potências européias ou por regimes minoritários brancos, como na África do Sul ou na Rhodesia (atualmente o Zimbábue). O Fela teve de desenvolver o panafricanismo no contexto da opressão dos africanos pelas oligarquias e as elites africanas surgidas da independência do continente. Ninguém estava preparado para o que aconteceu após a independência: a chegada ao poder de oligarquias traidoras e assassinas que espertamente confiscaram o panafricanismo e o transformaram em uma ideologia de Estado, para servir os interesses bastardos das novas elites opressoras africanas. O Fela teve de repensar o panafricanismo tradicional e reformular as bases de um novo panafricanismo de luta pelos interesses dos povos africanos esmagados do continente e nas diásporas africanas. Ele foi um gigante e usou seu poder criativo, como músico, para propagar essa nova orientação ideológica do panafricanismo. É por isso que me juntei a ele e que estimei que havia que escrever um livro sobre sua vida. Eu queria que o mundo inteiro ouvisse a mensagem que carregava na sua musica maravilhosa e nos seus pronunciamentos. Esta Puta Vida irá ser traduzida e publicada, também no Brasil, o ano que vem. A partir daí, as pessoas se darão conta da grandeza do personagem, e de sua imensa contribuição ao Mundo Negro, ao mundo das artes e à musica em geral. Para países como o Brasil, com sua maioria negra, conhecer a obra de Fela é indispensável para o fortalecimento da consciência cultural. Além disso, a música de Fela é uma das coisas mais belas do mundo. É por isso que solicitei ao Gilberto Gil de se incumbir do prefácio de This Bitch of a Life, que será publicada nos Estados Unidos em abril de 2009. O Gil fez um lindo, profundo e comovedor prefácio - realmente. E, dentro de alguns meses, essa biografia de Fela Kuti, com o prefácio de Gil, também será publicado no Brasil, em português, pela editora Nandyala, de Minas Gerais.

GI- Como o senhor recebeu a notícia do falecimento de seu amigo e parceiro, o poeta e ativista Aimé Cesáire, fundador do Movimento da Negritude? Recentemente, foi publicado o Discurso sobre a Negritude a partir do registro de um colóquio que o Senhor organizou. Apesar do termo Negritude ser um estandarte entre os militantes do movimento social negro no Brasil, poucos conhecem a obra poética e filosófica de Césaire . Hoje, no Brasil, cresce de maneira vertiginosa um movimento literário que tenho chamado Literatura Divergente, mas que também tem recebido os rótulos de Literatura Marginal, Periférica, Maloqueirista, etc. O Senhor pode nos instruir um pouco sobre o poeta Césaire? Como o Senhor avalia a importância que teve a literatura no processo da Negritude e qual pode ser o potencial poético e político dos escritores que fazem este movimento que citei, oriundo dos bolsões de misérias e racismo do Brasil?

CM- Claro, foi um momento de tristeza para mim, como militante, mas também como alguém para quem o Césaire sempre foi como um pai. Césaire me ajudou na vida, ao longo de mais de quatro décadas e, junto com o Abdias Nascimento, foi um dos meus maiores amigos pessoais e aliados políticos. A obra de Aimé Césaire, como a obra de Cheikh Anta Diop, é fundamental para todos, brancos e negros, que se interessam realmente pela problemática racial. A Negritude foi o movimento mais revolucionário que tivemos até agora, na definição dos parâmetros da luta contra o racismo. Cada qual, nas condições que são as suas, tem adaptado a Negritude de Césaire às condições específicas do seu contexto. Por exemplo, a Negritude foi trazida para dentro do Brasil pelo Abdias Nascimento e outros que, nos anos trinta e quarenta, militavam com ele. Na África do Sul, foi Steve Biko quem adaptou a Negritude de Césaire às condições de lá, chamando-a “Consciência Negra”. E nos Estados Unidos foram os intelectuais da Harlem Rennaissance (Countee Cullen, Langston Hughes, Claude McCay), e, muito mais tarde, os militantes do Black Power (Poder Negro), que assumiram a bandeira da Negritude e que o sintetizaram nas palavras: Black is Beautiful! Na atualidade, a Negritude de Césaire está sendo reelaborada pelo movimento Hip-Hop mundial, e está atingindo os jovens do mundo inteiro, sejam negros ou não: todos aqueles que desejam uma mudança fundamental da sociedade na direção da cooperação solidária e o fim do racismo. O grande sucesso da Negritude de Aimé Césaire se encontra, justamente, nesse fato: se trata de uma visão que já alcançou todo o planeta, implicando-nos todos. A Negritude é de todos, para evolucionar como seres humanos, e para estabelecer sociedades justas. Mas o fato de Césaire ter sido um dos maiores poetas do século XX nos conduz a outra dimensão do problema do mundo negro, universo dominado de maneira marcante pela oralidade. O mundo da oralidade tem sido reduzido pelo Ocidente a um mundo de inferioridade, pois só a expressão escrita teria valor. As elites negras que assumiram o poder nos diferentes países africanos acreditaram nessa postulação racista e, conseguintemente, abandonaram as línguas africanas e as tradições de oralidade das nossas civilizações; eles privilegiaram as línguas européias estrangeiras e as tradições da escrita, elevando estes a uma posição de hegemonia total. Césaire compreendeu que se tratava de uma decisão trágica que condenava os povos africanos a uma situação de inferioridade de fato diante do mundo ocidental dominante. Ele reagiu, e inventou a Negritude, que nasceu de um gesto poético. A poesia é o modo fundamental por meio do qual uma sociedade que privilegia a comunicação oral para transmitir seus fundamentos éticos, filosóficos e morais, se perpetua organicamente. É isso que o Césaire tinha compreendido, bem antes que qualquer outro: que a nossa tradição de oralidade, desde os tempos do Egito faraônico até os dias de hoje, não deveria ser desestimada nem abandonada. Césaire viu que a poesia desempenha, nas nossas sociedades, um papel orgânico fundamental, na medida em que ela nos permite fundir as diferentes dimensões e aspectos da verdade social: a informação, a formação, a transmissão dos valores morais, e a expressão dos sentimentos: de amor, de amizade, de revolta, de ira, de generosidade, de perdão, de solidariedade. Devemos aproveitar as vantagens da escrita, pois ela ajuda a preservar a memória histórica e é um instrumento maravilhoso para a transmissão do conhecimento tecnológico, mas sem abandonar a oralidade, pois esta é, em ultima instância, o modo de comunicação entre humanos que nos obriga a entrar em contato com o nosso próximo da maneira mais imediata que seja: a fala. A poesia nos permite nos enraizar no humano através de uma capacidade que nenhum outro animal tem: a capacidade de falar. Ou seja, que, para as sociedades e civilizações africanas – o chamado Mundo Negro - a poesia é um modo orgânico de comunicação privilegiado para reinventar a sociedade. Acho que é por isso que a tradição Hip-Hop/Rap tem tido um impacto tão revolucionário no mundo, pois ele chega ao povo diretamente, de boca a orelha, através da expressão poética ligada à música.

GI- Professor Carlos Moore, como o Senhor avalia a abrangência política de sua recente Carta Aberta ao Presidente de Cuba? Como estão os desdobramentos da questão?

CM- Em primeiro lugar, a Carta Aberta ao presidente-General Raúl Castro Ruz tinha vários objetivos, todos os quais foram atingidos. O primeiro era dar publicidade a algumas das demandas específicas que estão surgindo de distintos setores da população negra. O segundo era testar as intenções verdadeiras do governo raulista; veremos isso nos meses que vem. Por enquanto, este último fala de “reformas”, mas cada vez que anunciam novas medidas, essas são puramente cosméticas. Nada tem sido feito pelos raulistas que signifique uma verdadeira mudança de rumo na direção do desmantelamento das estruturas totalitárias, racistas e oligárquicas que alicerçam o regime. Absolutamente nada! O outro objetivo era impedir que o governo cubano continuasse desenvolvendo a farsa demagógica que consiste em insistir no fim do embargo/bloqueio americano, mas sem contemplar o fim do embargo/bloqueio instituído pelo regime, desde 1959, sobre a população majoritária do país. E, por último, pensei que era o momento de oferecer idéias novas susceptíveis de contribuir a iniciar um processo de mudanças verdadeiras, caso a equipe raulista quisesse encontrar uma saída consensual á situação cada vez mais bloqueada que conhece Cuba. A situação racial em Cuba é o problema fundamental da nação, e essa situação está se agravando. Como sempre, as ditaduras estimam que elas podem conter eternamente o povo que dominam por meio do terror. Mas a história nos ensina que o terror funciona até certo ponto, e logo, um dia, o povo não teme mais as conseqüências. Essas são as razões que me moveram a dirigir essa Carta Aberta ao presidente cubano. Não há outras razões, pois eu não tenho nenhum interesse político, nem agora nem para o futuro, que não seja ser um mero crítico social. Não tenho nenhuma agenda secreta. Quero, sim, voltar para meu país, e poder viver lá livremente e contribuir, como um intelectual crítico, à reconstrução de Cuba segundo um modelo democrático que preserve as conquistas sociais do povo cubano. É isso que eu quero; não a volta do passado horroroso, mesmo que seja sob um capitalismo ao estilo da China, nem a continuação do presente infernal, sob um comunismo bastardo e ineficiente, que tolera a proliferação das desigualdades sócio-raciais e mantém as estruturas racistas em pé.

GI- Professor Carlos Moore, muito obrigado pela entrevista!
FONTE: (http://gramaticadaira.blogspot.com/2009/01/entrevista-mestre-carlos-moore.html)